segunda-feira, 29 de julho de 2013

Dormindo.


Ele acordou mas não acordou. Ficou com uma sensação muito estranha, como se estivesse desperto dentro do próprio sono. Beliscou-se e, ao invés de sentir dor, passou um elefante cor de rosa pequenino voando bem em frente a seus olhos. Descobriu que estava sonhando ainda. Mas não queria, não podia sonhar. Tinha que acordar, estava na hora do trabalho, o celular já tinha tocado, ele sabia que não podia continuar dormindo. Fez força pra acordar e nada. Gritou, nada. Imaginou uma palmeira azul, ela surgiu à sua frente, ele bateu a testa no tronco repetidas vezes. Um cacho de coquinhos caiu sobre sua cabeça. Não acordou. Pensou em um despertador gigante, ele surgiu na sua frente, tocando alto. Nada. Pensou em um rádio-relógio, apareceu um grande, visor digital verde meio década de 80, tocando o refrão de um sertanejo a plenos pulmões. Nem assim despertou. Viu que o despertador, o rádio-relógio e o relógio de pulso estavam sincronizados, todos marcando 8h, e ele devia ter acordado às 7h30. Pensou num Transformer, depois no Lanterna Verde, depois no Lanterna Verde lutando contra o transformer, um barulho infernal de cinema com som Dolby, mas nada. Simplesmente não acordava. Resignou-se. Desistiu de enfrentar a insônia às avessas. Lembrou-se de que a melhor maneira de dormir quando se tem insônia é levantar da cama e fazer outra coisa – ler, por exemplo. Já que estava dormindo, tentou a estratégia inversa. Pensou numa cama king size, daquelas de hotel, com fios de algodão egípcio. Pluft, surgiu a cama. Pensou na Scarlett Johansson de baby doll, deitada, esperando por ele. Ela apareceu. Deitou-se na cama, começaram a se beijar, ele sentia os seios dela roçando em seu braço. Começou a deslocar a alça do baby doll. Acordou.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Academia.

1, 2, 3, 4. Diz que é bom contar pra ter foco na malhação. O exército faz isso. 1, 2, 3, 4. Para de olhar pra essa morena gostosa de calça atarracada fazendo exercício de glúteos, cacete. Você não tem a menor chance gordo desse jeito, não pega nem resfriado, que o vírus morre afogado na gordura antes. 1, 2, 3, 4. Se concentra aí que daqui a uns 6 meses e uns 20 quilos a menos, talvez ela olhe pra você. Isso aí, foco, mentaliza a barriga tanquinho, mentaliza os bíceps. Trata de correr nessa esteira, vagabundo. 1, 2, 3, 4. Quem manda se entupir de hambúrguer, cerveja e bacon? Ainda bem que não sou americano, porque ainda ia ter donuts. Como você deixou chegar nesse estado, mané? Tem que perder 4 sacos de arroz. Não, melhor perder um saco de cimento, o peso é igual mas o volume diminui. 1, 2, 3, 4. Aumenta a velocidade da esteira, isso. Logo hoje que eu esqueci o iPod. Detesto house music e toda academia só toca house music. Concentração na contagem, pô. 1, 2, 3, 4. House music é som de gente magra, que toma vodka com energético, jogando mãozinha pra cima. Se eu jogo a mãozinha pra cima a banha fica presa no pulso e demora meia hora pra descer. Se pelo menos fosse um rock n’roll. Combina mais com cerveja, hambúrguer e bacon. 1, 2, 3, 4. Mas ô mulher gostosa, putz. Diminui a esteira senão cê vai ter um infarto. 1, 2, 3, 4. E o instrutor do spinning gritando urrú. Urrú o cacete, respeita meu sofrimento, não é possível que alguém ache spinning legal a ponto de dizer urrú. 1, 2, 3, 4. Tudo é melhor que academia: comer, dormir, beber, conversar, respirar, fazer xixi. Até ir ao dentista é melhor que academia. Pensando bem, não é não. 1, 2, 3, 4. Que gostosa. Que bunda. E a minha tá maior que a dela. Mas me espera 6 meses pra você ver. Pronto, vai dar 10 minutos. Uffff, terminei. A gostosa também. Ué, peraí. Ela tá vindo pra cá.

- Oi, eu sou a Cris. Você fazia nesse horário?


segunda-feira, 15 de julho de 2013

Dedicação.

Morava sozinho e resolveu que precisava cuidar de alguém. Um cachorro daria trabalho demais. Um gato, trabalho de menos. Além do quê, não gostava de gatos. Um peixe era muito sem graça. Resolveu comprar uma planta. Morava num apartamento térreo, plantou na sacada da janela da sala, que dava para a rua, banhada pela luz da manhã. Acordava todos os dias e regava, com carinho. Pesquisava na internet a melhor maneira de cuidar, quis até comprar adubo, mas não era indicado. Só água e amor, dizia o pessoal do blog Dedos Esverdeados. Foi fazendo como recomendado e, numa irônica segunda-feira, viu o primeiro botão de flor surgir. Ficou contente, regou a planta até demais. Já pelo terceiro dia o botão tinha desabrochado. Estava feliz que finalmente toda aquela dedicação tinha sido correspondida. Tirou foto, postou no instagram, foi trabalhar animado, voltou pra casa, deu um boa noite mental para a planta, porque ficou sem graça de falar alto com ela. Dormiu com um sorriso no rosto. No dia seguinte, acordou para observar o objeto do seu cuidado. Não estava mais lá. Colocou a cabeça pra fora da janela. Tinha sido traído: a flor estava fugindo nas mãos de uma menina, quase virando a esquina.


quarta-feira, 10 de julho de 2013

Hora do Almoço.

Resolveu que nunca mais iria almoçar sozinho. Chegava ao self-service, montava o prato e procurava mesas de duas pessoas ou quatro, só para perguntar se uma das cadeiras estava livre. A maioria era educada, um ou outro pouco polido fazia um olhar de cai fora. Sentava-se e sempre puxava papo. No início era sobre o tempo, esfriou né, depois futebol. Desistiu do futebol porque era polêmico demais, e tinha decidido que nunca mais comeria a sós exatamente para tentar colocar um pouco mais de sentimento gregário naquele horário entre meio-dia e duas. Começou a notar que o conteúdo do prato influenciava no assunto. Comida gordurosa enveredava por política, terrorismo, filmes franceses. Pratos leves passeavam por pseudo-celebridades, moda, seriados cômicos e comédias românticas de Hollywood. Conheceu gente bacana, gente chata, e muita, mas muita gente mais ou menos. Começou uma sistematização obsessiva: anotava local, nome das pessoas que tinham aceitado, e a nota do papo. Depois de um ano, viu que a média era baixa. As companhias bacanas puxavam a nota para cima, mas a grande maioria, sem sal, deixava a nota geral por volta de 2,5. Chegou à conclusão de que, apesar de nunca mais ter almoçado sozinho, o benefício não tinha sido lá essas coisas, para o plano que tinha elaborado: conhecer gente nova, passar por experiências interessantes, aprender mais, adicionar um pouquinho mais de tempero à necessidade básica do se alimentar. Num feriado, self-service com pouquíssimos clientes, prato na mão procurando uma mesa ocupada em meio a tantas vazias, o prato estava preparado para um papo cabeça: costelinha, feijão e torresmo. Comeu um pedaço de torresmo ainda em pé, quando engasgou-se. O ar foi faltando, não conseguia respirar. A última coisa que sentiu foram fortes tapas nas costas de um dos clientes que estava sozinho em uma mesa. 

terça-feira, 9 de julho de 2013

Amores.

O primeiro amor foi o palhaço do circo que passou pela cidade. Assistiu ao espetáculo 20 vezes, chegou a decorar as piadas e mesmo sabendo início, meio e fim, ria de todas elas. Depois veio o jornaleiro da banca. Rapaz bonito, imberbe mas com um bigodinho sempre por nascer. Folheava as revistas de fofocas e batia papo, perguntava sobre a situação econômica para puxar assunto, mas ele só tinha olhos para a loirinha de óculos que pegava o ônibus no ponto todo dia às 7h15. Depois foi o balconista da farmácia. Ela tomava anticoncepcional injetável na bunda, só para provocá-lo. Meses depois, viu-o andando de mãos dadas com outro rapaz. Em seguida, foi um professor. Sentava sempre nas primeiras cadeiras para observar o homem mais velho, grisalhos em profusão, com um ar sempre distante e sempre superior. Tratava as alunas como minhas filhas, e tinha especial carinho por uma gostosona que vivia no fundo da sala mascando chiclete e mexendo no celular. Um dia, cansada de tantas frustrações, tomou uma atitude impensável para a grande maioria das mulheres: foi a um bar sozinha. Mal sentou-se, um homem a abordou. Alto, bonito, traços fortes. Papo ótimo, bem empregado, inteligente, genuinamente interessado. Sensível, perguntou dela, dos problemas, da família, do trabalho. Tinha um sorriso sedutor, estava encantado. Perguntou se podia pagar um drinque, ela disse que sim. Um rapaz trouxe a bebida. Naquele momento, ela ficou completamente apaixonada. O coração disparou, todos os sons do bar se misturaram, e ela continou balançando a cabeça afirmativamente para o homem, enquanto admirava, suspirava, pensava em casar e ter filhos com o garçom.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Vozes.

Resolveu pegar o carro e ir para um lugar onde pudesse ouvir só a si mesmo. As vozes na cabeça eram muitas, opiniões de amigos, pais, parentes, colegas de trabalho. Colocou um CD na maior altura, para não ouvir nada além da música. Pôs os óculos escuros, dirigiu por 1 hora pela rodovia, depois mais 20 minutos por uma estradinha de terra vicinal, até encontrar um ponto onde pudesse parar o veículo, saltar, olhar a paisagem e escutar a revelação que, tinha certeza, viria. Do fundo do coração, ou do fundo da mente, ele sabia que a resposta viria. Desligou o som, bateu a porta, afastou-se alguns metros do carro. Som de vento, pássaros ao longe, um inseto bateu asas bem próximo, vrrrrrrrr. Enfim, silêncio. Olhou para o horizonte e apurou a audição para tentar escutar o que vinha de dentro. A princípio, nada. Continuou procurando, até que ouviu uma voz fraca, quase inaudível. Prestou atenção e o som ia aumentando, mas ainda não era compreensível. Até que a mensagem surgiu novamente, e ele enfim entendeu. Vinha do estômago. Era fome.

Desembarque.


Pai contador, mãe contadora. Filho de peixes, contador é. Mesinha do avião aberta, se perdia nas planilhas de excel, números números números. O fone de ouvido, enorme, usava sem música, só para se distanciar dos ruídos e barulhos que o desconcentravam. Sonhava com porcentagens, impostos. Os olhos cansaram, fechou o laptop e a mesinha. Aterrissagem sem problemas, entrou pelo finger, esperou a mala preta – 84% de todas as malas são pretas, sabia disso, bom contador que era – demorou, pegou a mala. A rodinha travava, estava com o fone no ouvido ainda, detestava aquela bagunça sonora do aeroporto. Saindo pelo desembarque, deu de cara com o motorista segurando um cartaz: DJ Alex BB. Pensou um segundo, disse “sou eu”, e entrou no carrão com ar condicionado rumo ao hotel e ao horário na boate às 2 da manhã. No dia seguinte, o site das baladas da cidade comentava o setlist tão original, que durou exatos 1h 23min 45segs.