O sujeito ouvia o som
do banheiro dos vizinhos de prédio. O edifício tinha uma área interna que
ressoava tudo que acontecia nos toaletes. Todo dia de manhã, os ruídos invadiam
o ambiente. Um homem cantando Roberto Carlos. Uma adolescente cantando em inglês
ruim. Uns ruídos esquisitos que ele fazia questão de não tentar entender. Aquilo
irritava e atrapalhava a leitura do sujeito. Especialmente quando ouvia uma mãe,
que sempre chamava o filho pequeno para tomar banho com ela. “Lava atrás da
orelha, lava o pinto, fecha os olhos pra não cair xampu”. Para piorar, naquele
dia o pai estava junto. A família conversava animadamente no box, enquanto o sujeito
tentava ler seu livro, sem sucesso - o papo reverberava e acabava com sua
concentração. Então os três começaram a cantar a música-tema do Ben 10. Em
uníssono. Fora do tom. Era impossível ler. Pensou em sair do banheiro pra
continuar a leitura, mas aquele era um livro de banheiro. Pensou em gritar
pedindo silêncio. Afinal, se ele os ouvia, eles o ouviriam também. Controlou-se
pensando no ridículo da ideia: nem horário de silêncio era mais. Mas o coro continuava. O sujeito então soltou a voz e começou a cantar “Desafinado”. Alto. Errando propositalmente. Todas as notas. A letra inteira.
Depois, nunca mais ouviu o Roberto Carlos, nem as canções em inglês ruim, nem o
tema do Ben 10. Já os ruídos esquisitos ainda soavam vez ou outra.
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
sábado, 5 de julho de 2014
Rádio.
O
rádio antigo estava escondido numa das barraquinhas da feira de antiguidades.
Meio malcuidado, empoeirado, atrás de uns castiçais e uns pôsteres de
publicidade da década de 40. O homem pediu ao vendedor para tirar a poeira e
ver o produto. Apesar da ação do tempo, estava perfeito. Perguntou se
funcionava, o senhor disse que sim, mas não havia eletricidade ali na rua.
Confiou e levou. Encontrou um espaço perfeito na estante e ligou o bicho na
tomada. Esperou um minuto até as válvulas esquentarem e começou a ouvir
estática. Foi girando o botão até chegar a alguma estação. O som era abafado,
mas ouvia-se uma música orquestrada, que em segundos terminou. Falou uma voz
impostada: “Ouvimos a forrrmidável orquestra Glenn Miller. E agora, uma palavra
dos nossos patrocinadores.” Começou um jingle estranho, com um coro feminino,
cantando “a elegancia masculina, ô ô ô ô, Aurora, brilha mais com brilhantina,
ô ô ô ô, Glostora”. Não sabia o que era brilhantina, muito menos Glostora. O
locutor voltou dizendo “interrrrompemos nossa programação para notícias
urgentes do front da guerra. Os aliados, junto com a Força Expedicionária
Brasileira, tomaram Monte Castello, na Itália”. Ligou para o celular do avô, que era vivo e morava perto. Pediu que ele viesse o mais rápido
possível ouvir aquilo. Enquanto esperava, ansioso, a transmissão falhava. Meia
hora depois, o avô tocou a campainha. O neto abriu rápido, mas o rádio já era
só ruídos. Tentaram sintonizar a estação novamente, sem sucesso. Inconformado,
contou ao avô: “O senhor não acredita, era uma estação antiga, tava tocando
Orlando Silva!” O avô pôs a mão no ombro do neto. “Não tem problema, filho. Hoje
eu prefiro a Ivete Sangalo.”
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Paqui.
O
menino não gostava de nada. Filho de pais muito ricos, tinha tudo importado, de
roupas a bicicleta motorizada. O cachorro, um Bernese Mountain Dog, que era
suíço e só entendia francês, morava esquecido no canil desde o dia em que
chegou à casa e foi deixado de lado pelo menino após 20 minutos. Toda vez que
ganhava algo novo, ou torcia o nariz, ou enjoava rápido. Não tinha amigos na
escola para ricos, até os colegas de nariz mais empinado o achavam esnobe. Numa
sexta-feira, o pai voltou de viagem de um distante país asiático trazendo um
elefante-anão de presente. Tinha mais ou menos o tamanho de um gato. Frente ao
terror da mãe, o pai esclareceu: era um animal muito raro, crescia pouco,
ficaria menor que o cão da família. Pela primeira vez em seus 9 anos de idade,
os olhos do menino brilharam. O mini-elefante andava pela casa, esbarrava nos
móveis com a tromba, desajeitado, e o menino ria de doer a barriga. Os pais se
aliviaram, podiam agora ficar absortos em seus iPads sem culpa, pelo menos até
o garoto cansar do brinquedo vivo. Mas o fim de semana passou e ele não cansou.
Dormia e acordava com o animalzinho em sua cama. Batizou de Paqui - diminutivo
de paquiderme. Os dois ficaram inseparáveis. Na segunda, pediu à mãe para levar
o bichinho à aula. “Não pode entrar na escola, mas o motorista pode levar no
carro com você”, respondeu. Os colegas ficaram encantados. Puxaram papo. O
garoto chato, esnobe e distante sentiu o gostinho da popularidade. Contou como
era divertido, mentiu dizendo que Paqui plantava bananeira com a tromba, que
dava saltos de 3 metros, que fazia cocô cheiroso. O dia passou lento, o menino
só pensava em ver Paqui de novo. Terminada a aula, o motorista levou-o para
casa. Chegou gritando o nome do bichinho. A mãe estava lívida. “Cadê o Paqui,
mãe?”. O bichinho tinha fugido num descuido, ela deixara a porta aberta
enquanto olhava seu iPad. Viram pelas câmeras de segurança o momento em que ele
tinha saído pelo portão da mansão, esquecido aberto pelo motorista, para nunca
mais ser encontrado. O menino chorou uma semana. Perdeu a cara de mau-cheiro.
Voltou a usar os presentes que sempre deixara de lado. E entrou no francês para
aprender a brincar com o cachorro.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
Bom humor.
O
ambiente de trabalho era sério, sisudo. Do tipo pressão total. Passava noites
dormindo mal, preocupado com o que teria que fazer no dia seguinte. Ia dormir
tarde e acordava mais cedo do que precisava, chegava antes do horário para
adiantar o serviço, naquele clima pesado. Um dia, descobriu por acaso que quanto
menos dormia, melhor ficava seu humor. Tinha saído com os amigos em pleno
domingo, para tentar descontrair antes da semana começar. Foi esticando no
boteco, depois na boate, depois no inferninho, depois na casa de strip-tease,
depois passou em casa, tomou uma ducha e chegou ao trabalho em plena segunda, bradando
bons-dias alegres e insuportáveis. Os colegas continuavam tensos e cheios de
formalidades. Ele nem tinha bebido muito na noite anterior: a ressaca era dos
outros com seu comportamento. Trabalhou muito e rendeu mais ainda durante
o dia, causando a inveja dos colegas mais próximos, que só queriam que
chegassem as 18 horas – da sexta. Saiu de novo na quarta seguinte, foi difícil
achar quem o acompanhasse. Terminou conversando com o bêbado do bairro.
Novamente, foi o tempo de passar em casa, tomar um banho e chegar ao trabalho a
200 por hora, com sorriso indisfarçável, contando piadas, mais divertido do que
nunca, alvo de admiração das mulheres e de ódio dos homens. Resolveu testar
seus limites. Passou mais 3 noites sem dormir. A cada dia estava mais bem-humorado,
se é que era possível. Chegou virado ao escritório na manhã de segunda. Foi um
show. Ria para todos, elogiou a beleza das secretárias, fez piada com o
implante capilar do colega – algo que todos queriam ter feito, mas não tinham coragem.
Aquele astral todo incomodava. Foi chamado pelo chefe e demitido. Gargalhou da notícia e foi embora. Ninguém ameaça impunemente tanta tristeza.
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Insônia.
Ele
rolava de um lado para o outro na cama. 1h21. Tinha feito tudo como mandava o
figurino de quem quer dormir sem problemas: chegou em casa, comeu, tomou um
banho quente, não assistiu TV. Escutou músicas relaxantes. Começou a ler um
livro chato. E quando o sono bateu, desligou o abajur. Mas nada. Não conseguia
pregar o olho. O pior é que ele não sabia a causa da insônia. Tentou descobrir.
Era o trabalho? Podia ser, mas nada específico. O chefe até era um saco, mas
muito baixinho - não tinha nem tamanho pra tirar seu sono. Problemas com a
família também não eram: os pais iam bem, os irmãos idem, e ele não era casado
nem tinha filhos. Podia ser preocupação com o cachorro, mas ele não tinha um.
Lembrou do peixe dourado que ganhou na infância e que morreu no dia seguinte,
mas esse motivo tinha ido descarga abaixo anos atrás, literalmente. O que podia
ser? Vai ver era o medo de ficar doente. Mas tinha uma saúde de touro, a última
gripe ele nem se lembrava quando. 1h23. O pensamento viajava rápido, mas o raio
do tempo não passava. Dois minutos só. Aí descobriu. Estava preocupado com as
horas. As horas que passavam, inexoráveis, e ele não podia fazer nada quanto a
isso. Um desfile interminável de segundos bem à sua frente, sem pressa – aqueles
segundos que teimam em não ter a velocidade dos centésimos. E ele ali,
impotente. Racionalizou e acabou desistindo de se preocupar. Não havia o que
fazer. Acalmou-se. 1h25. Agora vou dormir, pensou. Ia caindo no sono quando o
despertador tocou. Eram 7h30.
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