Pensou
como seria se tudo fosse diferente. Um outro nome, um outro local de
nascimento, uma outra idade. Mais velho, mais novo, não importava. Outros pais,
outros irmãos, outros amigos. Uma outra língua-mãe, talvez. Trocaria tudo: o
corpo, a cor da pele, o tipo de cabelo. Manteria apenas o sexo e o rosto.
Pronto: tinha resolvido ser outra pessoa. Raspou a cabeça, fez bronzeamento
artificial, abandonou o emprego sem avisar. Trocou de celular, saiu do
Facebook, não avisou a família, nem os amigos. Fez um curriculum falso,
mudou-se de São Paulo para Porto Alegre. Hospedou-se em um hotel barato no
centro. Agendou entrevistas de emprego, chamava atenção pela pele bronzeada e
pelo português com sotaque difícil de identificar. Dizia que era pela família
de origem uzbeque e simulava uma ou outra palavra no idioma. Foi contratado por
uma empresa de importação e exportação que queria abrir contatos na Ásia.
Chegou ao novo trabalho na segunda, sentou-se na mesa, foi apresentado aos
colegas. Tinha acabado de ligar o computador quando ouviu alguém gritar:
“Betão, você por aqui! Que bronze é esse? Tu tá feio pra cacete careca, hein?”
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Carma.
O
sujeito tinha um carma irritante. Nunca, jamais, em tempo algum, conseguia um primeiro
carrinho que funcionasse. Carrinho de supermercado: o primeiro que ele escolhia
tinha a roda presa. Carrinho de aeroporto: o primeiro que ele puxava estava
preso no da frente. Sempre tinha que se contentar com o segundo carrinho. Tentou enganar a maldição. Chegava para fazer
compras, ia com a mão no carrinho que tinha escolhido e, no último momento, trocava.
Não dava certo, o carrinho continuava a ter problema. O carma podia ser
ridículo, mas não era burro. E as consequências já tinham sido sérias. Quando
criança, no parque de diversões, foi ao bate-bate. Seu carro não saiu do lugar.
Tomou porrada dos outros a torto e a direito e ficou traumatizado: nunca
conseguiu tirar carteira de motorista. Tentou a terapia. O psicanalista disse
que aquilo era da cabeça dele, que procurasse algo para relaxar. Foi pescar com
os amigos no Mato Grosso, num local famoso por muitos peixes. Os outros foram
fisgando um a um, e ele nada. Passou o fim de semana, todos encheram seus
isopores, menos ele, que não pegou nem resfriado. Um dos amigos brincou: “é
carma”. No domingo à noite, já no aeroporto para pegar o voo de volta, ele puxou
o primeiro carrinho de bagagem. Não funcionava.
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
Beijo.
Beijavam-se
em público, numa mesa da calçada do restaurante, como se não houvesse
amanhã. Um casal de meia idade passou e virou o olho. O garçom não encontrava
espaço pra servir a bebida. Quem observasse atentamente veria as línguas pra lá
e pra cá, um balé roto-rooter que deixava bem clara a razão dos beijos cênicos
serem precisamente isso: cênicos. Constrangimento entre os demais comensais. Uma
mulher passou na calçada com o filho de 5 anos observando atento; quando
percebeu, desviou a atenção do garoto: “olha o cachorrinho ali na esquina,
filhão”. Alheia, uma senhora de seus 80 anos tomava seu café pós-almoço, junto
com a filha de seus 50 e poucos.
- Pouca vergonha, hein
mamãe? Em plena luz do dia.
- Tem razão. Muito mais
gostoso se fosse à noite.
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