terça-feira, 26 de abril de 2016

Avô.


Nasceu pobre, começou a trabalhar ainda criança. Filho de operário, operário é. Aos 15, já dava expediente em uma fábrica de tecidos, supervisionando adultos. Aos 20 e poucos já era casado. Mudou de Estado por causa do trabalho, teve 7 filhos. A vida dura talvez tenha deixado aquele homem com poucas palavras e poucos sorrisos. Sustentar a mulher e as crianças não era fácil, mas o narigão e o bigode apontavam a direção: sempre em frente. Os filhos cresceram, chegaram 19 netos. Até que, num mesmo ano, perdeu a esposa e uma filha. As palavras e os sorrisos, que já eram poucos, poderiam ter sumido de vez. Mas algo aconteceu. Em vez disso, ele desabrochou. O rosto se abria cada vez mais, o olhar e a vontade de viver eram nítidos para familiares e estranhos. Puxava papo e cativava desconhecidos na rua. Criou bordões, sabia de cor o aniversário de todos os filhos, netos, 14 bisnetos e até a tataraneta – andava com sua foto na carteira, para mostrar a todos. Tomava cerveja, vinho, cachaça, pescava, viajava o Brasil e o mundo, adorava festa e gente. Contava histórias, antigas e recentes. Ria-se. “É esse o meu pai?”, se perguntavam os filhos. “É esse o meu avô?”, se espantavam os netos. Era. Fez 80, 85, 90, 94 anos com muitas palavras e muitos sorrisos. “Nossa, mas ele tem isso tudo?”, perguntava quem o via pela primeira vez. Sim, ele tinha isso tudo: energia, amor, bom humor, idade. Mas o mundo não é o estranho caso de Benjamin Button. O tempo cobrou seus juros e ele foi embora encontrar a mulher, a filha e os irmãos que já tinham ido. Deixou um legado imaterial, difícil de explicar, mas fácil de sentir pra qualquer um que tenha convivido com ele. Família e amigos se despediram em uma tarde quente, de sol forte. E eis que na hora do adeus, inexplicável, surge um arco íris no céu. Um sinal lá do alto. Ou nossas lágrimas evaporando.

Obrigado, Seu Nilson. Deus te abençoe 10 vezes. 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A ditadura da fofura.

Acompanhe as redes sociais. Gatos. Cachorros. Bebês. Sorrisos. Corações. Quer likes? Seja fofo. Quer shares? Seja mais fofo ainda. A propaganda, área onde atuo, é um reflexo da sociedade. E até ela está ficando cada vez mais fofa. Menos humor, mais fofura. Afinal de contas, é muito mais saudável passar uma mensagem positiva para as pessoas do que tentar fazer humor – já que o humor, por pressuposto, sempre tem alguém se dando mal.  Isso é bom, certo?

Não sei. Acompanhe as redes sociais. Ódio. Desrespeito às divergências. Não-aceitação das diferenças. Zeca Camargo foi execrado pelos fãs de Cristiano Araujo porque disse que ele não era tão famoso assim. Heterossexuais ofendem qualquer um que defenda o casamento entre pessoas do mesmo sexo (excelente caso neste link aqui: a resposta de um fotógrafo de casamentos americano a um casal que cancelou seus serviços por ele clicar casais gays). Não basta eu discordar da sua opinião: é preciso que eu humilhe você, xingue você, e em último caso, obrigue você a ter a mesma opinião que a minha.

Não sou antropólogo nem psicólogo, mas algo de muito estranho está acontecendo. Somos uma sociedade que na fachada, ama tanto as coisas fofinhas que elas começam a ser quase obrigatórias para o sucesso de qualquer atividade comercial. Mas no fundo, odiamos qualquer coisa que seja minimamente diferente do nosso mundinho. Até o Google e o Facebook colaboram para isso. Seus algoritmos de busca exibem só o conteúdo que tem a ver com você. Para ficarmos num exemplo político: se você é de direita e fizer uma busca sobre o assunto, os resultados virão com ideias semelhantes às suas. Se é de esquerda, o inverso acontece. Tudo baseado no seu histórico e no seu perfil. Assim, perde-se a chance de entrar em contato com visões de mundo distintas. Aquilo que a gente sempre teve nas ruas, nas reuniões de família, nas mesas de bar.

Este outro link aqui fala sobre linchamentos virtuais. Gente que postou uma idiotice ou frase de mau gosto/preconceituosa para seus poucos seguidores/amigos, e que tiveram suas vidas destruídas publicamente.


Essa é a ditadura da fofura. Se você é fofo, eu te amo. Se não é, eu te odeio.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

No banheiro.


O sujeito ouvia o som do banheiro dos vizinhos de prédio. O edifício tinha uma área interna que ressoava tudo que acontecia nos toaletes. Todo dia de manhã, os ruídos invadiam o ambiente. Um homem cantando Roberto Carlos. Uma adolescente cantando em inglês ruim. Uns ruídos esquisitos que ele fazia questão de não tentar entender. Aquilo irritava e atrapalhava a leitura do sujeito. Especialmente quando ouvia uma mãe, que sempre chamava o filho pequeno para tomar banho com ela. “Lava atrás da orelha, lava o pinto, fecha os olhos pra não cair xampu”. Para piorar, naquele dia o pai estava junto. A família conversava animadamente no box, enquanto o sujeito tentava ler seu livro, sem sucesso - o papo reverberava e acabava com sua concentração. Então os três começaram a cantar a música-tema do Ben 10. Em uníssono. Fora do tom. Era impossível ler. Pensou em sair do banheiro pra continuar a leitura, mas aquele era um livro de banheiro. Pensou em gritar pedindo silêncio. Afinal, se ele os ouvia, eles o ouviriam também. Controlou-se pensando no ridículo da ideia: nem horário de silêncio era mais. Mas o coro continuava. O sujeito então soltou a voz e começou a cantar “Desafinado”. Alto. Errando propositalmente. Todas as notas. A letra inteira. Depois, nunca mais ouviu o Roberto Carlos, nem as canções em inglês ruim, nem o tema do Ben 10. Já os ruídos esquisitos ainda soavam vez ou outra.


sábado, 5 de julho de 2014

Rádio.

O rádio antigo estava escondido numa das barraquinhas da feira de antiguidades. Meio malcuidado, empoeirado, atrás de uns castiçais e uns pôsteres de publicidade da década de 40. O homem pediu ao vendedor para tirar a poeira e ver o produto. Apesar da ação do tempo, estava perfeito. Perguntou se funcionava, o senhor disse que sim, mas não havia eletricidade ali na rua. Confiou e levou. Encontrou um espaço perfeito na estante e ligou o bicho na tomada. Esperou um minuto até as válvulas esquentarem e começou a ouvir estática. Foi girando o botão até chegar a alguma estação. O som era abafado, mas ouvia-se uma música orquestrada, que em segundos terminou. Falou uma voz impostada: “Ouvimos a forrrmidável orquestra Glenn Miller. E agora, uma palavra dos nossos patrocinadores.” Começou um jingle estranho, com um coro feminino, cantando “a elegancia masculina, ô ô ô ô, Aurora, brilha mais com brilhantina, ô ô ô ô, Glostora”. Não sabia o que era brilhantina, muito menos Glostora. O locutor voltou dizendo “interrrrompemos nossa programação para notícias urgentes do front da guerra. Os aliados, junto com a Força Expedicionária Brasileira, tomaram Monte Castello, na Itália”. Ligou para o celular do avô, que era vivo e morava perto. Pediu que ele viesse o mais rápido possível ouvir aquilo. Enquanto esperava, ansioso, a transmissão falhava. Meia hora depois, o avô tocou a campainha. O neto abriu rápido, mas o rádio já era só ruídos. Tentaram sintonizar a estação novamente, sem sucesso. Inconformado, contou ao avô: “O senhor não acredita, era uma estação antiga, tava tocando Orlando Silva!” O avô pôs a mão no ombro do neto. “Não tem problema, filho. Hoje eu prefiro a Ivete Sangalo.”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Paqui.


O menino não gostava de nada. Filho de pais muito ricos, tinha tudo importado, de roupas a bicicleta motorizada. O cachorro, um Bernese Mountain Dog, que era suíço e só entendia francês, morava esquecido no canil desde o dia em que chegou à casa e foi deixado de lado pelo menino após 20 minutos. Toda vez que ganhava algo novo, ou torcia o nariz, ou enjoava rápido. Não tinha amigos na escola para ricos, até os colegas de nariz mais empinado o achavam esnobe. Numa sexta-feira, o pai voltou de viagem de um distante país asiático trazendo um elefante-anão de presente. Tinha mais ou menos o tamanho de um gato. Frente ao terror da mãe, o pai esclareceu: era um animal muito raro, crescia pouco, ficaria menor que o cão da família. Pela primeira vez em seus 9 anos de idade, os olhos do menino brilharam. O mini-elefante andava pela casa, esbarrava nos móveis com a tromba, desajeitado, e o menino ria de doer a barriga. Os pais se aliviaram, podiam agora ficar absortos em seus iPads sem culpa, pelo menos até o garoto cansar do brinquedo vivo. Mas o fim de semana passou e ele não cansou. Dormia e acordava com o animalzinho em sua cama. Batizou de Paqui - diminutivo de paquiderme. Os dois ficaram inseparáveis. Na segunda, pediu à mãe para levar o bichinho à aula. “Não pode entrar na escola, mas o motorista pode levar no carro com você”, respondeu. Os colegas ficaram encantados. Puxaram papo. O garoto chato, esnobe e distante sentiu o gostinho da popularidade. Contou como era divertido, mentiu dizendo que Paqui plantava bananeira com a tromba, que dava saltos de 3 metros, que fazia cocô cheiroso. O dia passou lento, o menino só pensava em ver Paqui de novo. Terminada a aula, o motorista levou-o para casa. Chegou gritando o nome do bichinho. A mãe estava lívida. “Cadê o Paqui, mãe?”. O bichinho tinha fugido num descuido, ela deixara a porta aberta enquanto olhava seu iPad. Viram pelas câmeras de segurança o momento em que ele tinha saído pelo portão da mansão, esquecido aberto pelo motorista, para nunca mais ser encontrado. O menino chorou uma semana. Perdeu a cara de mau-cheiro. Voltou a usar os presentes que sempre deixara de lado. E entrou no francês para aprender a brincar com o cachorro.